O francês Thomas Piketty – economista que virou celebridade com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários países – tenta há alguns anos estudar o Brasil, mas não consegue acessar os dados. O argentino Facundo Alvaredo, que integra a equipe de Piketty em Paris, contou à BBC Brasil que desde 2008 tenta obter – sem sucesso – os dados anônimos de Imposto de Renda do Brasil com a Receita Federal.
Esse foi o motivo pelo qual o Brasil ficou de fora do livro O Capital no Século XXI – livro de Piketty cuja tradução para o inglês alcançou, no final de abril, o topo da lista dos livros mais vendidos na Amazon.com, desbancando até mesmos os de ficção ou auto-ajuda. Há dois meses, ele está entre os cem mais vendido na loja online.
Facundo disse que já solicitou à Receita Federal por diversos meios as informações dos últimos 25 anos. Ele já conseguiu os números de 1930 a 1988 e do ano 2000 – valores que foram divulgados no passado pela própria Receita Federal e hoje estão disponíveis em bibliotecas de importantes universidades como Harvard. A análise desse período será publicada até setembro, afirma.
"Nem todo os países aos quais solicitamos os dados nos deram retorno positivo, mas a Receita brasileira nem nos respondeu", disse Alvaredo. "O Brasil é um país importante. Se tivéssemos tido acesso aos dados dos últimos anos, essas estimativas já teria sido publicadas e citadas no livro", acrescentou.
Piketty já analisou dados tributários de quase 30 países, constatando o aumento recente da concentração de renda em economias ricas, como Estados Unidos e Europa, e também nas em desenvolvimento, como Índia e Colômbia. Sua equipe criou um site com os números coletados – The World Top Incomes Database – e está agora levantando mais números de cerca de 50 países.
A expectativa de Alvaredo é que o enorme reconhecimento alcançado pelo livro de Piketty convença o governo brasileiro a liberar os dados. Ele observa que o estudo da concentração de renda é importante para o desenvolvimento de melhores políticas sociais e tributárias.
Piketty defende, por exemplo, que as pessoas mais ricas paguem mais imposto de renda. No caso dos Estados Unidos, ele sugere em seu livro que pessoas com rendas anuais acima de US$ 1 milhão (cerca de R$ 2,2 milhões) paguem alíquotas superiores a 80%. O objetivo, diz ele, é desestimular o pagamento de super salários. Já as rendas acima de US$ 200 mil (R$ 440 mil) seriam taxadas em 50% ou 60%.
Nos Estados Unidos, a alíquota máxima já foi de 90% após a Segunda Guerra, mas voltou a cair depois dos anos 70 e hoje não chega a 40%. Simultaneamente, a concentração de renda passou a subir e hoje é recorde no país (o estudo de Piketty abrange um século de dados).
"É importante ressaltar que algum grau de desigualdade é importante para gerar incentivos [econômicos]. O ponto aqui é que os incentivos não parecem exigir níveis tão altos de desigualdade como os observados em muitos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil", destaca Alvaredo.
"Níveis muito altos de desigualdade são indesejáveis sob muitos pontos de vista – por exemplo, para o bom funcionamento das sociedades democráticas – e desnecessários para o crescimento", ressalta.
Desigualdade mais alta
As informações mais utilizadas no mundo para o estudo da desigualdade de renda são os dados coletados nas pesquisas domiciliares, como o Censo, que no Brasil são feitas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Goegrafia e Estatística).
As informações mais utilizadas no mundo para o estudo da desigualdade de renda são os dados coletados nas pesquisas domiciliares, como o Censo, que no Brasil são feitas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Goegrafia e Estatística).
O problema é que em geral essas pesquisas captam bem os salários das classes baixa e média, mas não identificam adequadamente a renda da parcela mais rica da população – seja porque essas pessoas preferem não informar a totalidade de sua renda, seja porque não sabem precisar tão bem seus ganhos com investimentos.
E nos últimos anos, revela a pesquisa de Piketty, o rendimento do capital (aplicações financeiras, aluguéis, lucros empresarias) tem crescido mais rapidamente do que os salários – o que explica porque a concentração de renda está aumentando no mundo.
No seu livro, ele diz que em todos os países analisados "os dados fiscais revelam níveis de renda muito maiores e mais realistas entre os mais ricos do que mostram as pesquisas domiciliares". No caso dos Estados Unidos, a pesquisa domiciliar indica que em 2012 os 5% mais ricos detinham 22,5% da renda nacional. Já o economista francês calcula um percentual bem maior: 38,6%.
Alvaredo acredita que o mesmo será observado no caso brasileiro - apesar de uma parcela menor ter capacidade de investir nos países em desenvolvimento, isso tem aumentado a cada ano, nota.
O economista José Roberto Afonso, da Fundação Getúlio Vargas, tem a mesma expectativa. Há anos ele também tenta ter acesso aos dados da Receita Federal.
"Quando o pesquisador do IBGE pergunta a renda de uma pessoa, ela responde seu salário. Se ela tem investimentos, muitas vezes nem sabe dizer quais são seus ganhos. Quando sabem, muitas vezes não querem revelar", afirma Afonso. O Censo mais recente, de 2010, indica que 37% da renda do país está no bolso dos 5% mais abastados.
Desigualdade em queda?
Para Alvaredo, é extremamente importante ter acesso aos dados mais recentes do Imposto de Renda para entender melhor a queda da desigualdade no Brasil nos últimos anos.
Para Alvaredo, é extremamente importante ter acesso aos dados mais recentes do Imposto de Renda para entender melhor a queda da desigualdade no Brasil nos últimos anos.
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Marcelo Medeiros observa que os dados do IBGE tem indicado que a desigualdade tem recuado mais lentamente nos últimos anos. Se a renda dos mais ricos estiver crescendo mais rápido do que o instituto estima, ressalta ele, pode ser que a concentração de renda tenha até parado de cair.
A BBC Brasil questionou a Receita Federal sobre a não divulgação dos dados anônimos de Imposto de Renda, mas tudo que obteve como resposta foi um link para estudos do órgão que não trazem as informações em questão.
"Há previsão de divulgação de outros estudos, semelhantes aos que te enviamos, no site na Receita Federal a partir da próxima semana, referentes aos anos de 2011 e 2012. Esses estudos mostram os dados públicos da Receita Federal. Existem outros estudos que dizem respeito a processos internos da Administração Tributária, usados para subsidiar decisões internas da Receita Federal e que não são divulgados", respondeu o órgão.
Desafio
Piketty observa em seu livro que nos anos 90 houve uma piora na divulgação dos dados tributários em vários países, ironicamente por causa da informatização. Antes, quando as informações não eram computadorizadas, os órgãos de receita precisavam produzir relatórios para seu próprio funcionamento – e disponibilizavam seu acesso.
Piketty observa em seu livro que nos anos 90 houve uma piora na divulgação dos dados tributários em vários países, ironicamente por causa da informatização. Antes, quando as informações não eram computadorizadas, os órgãos de receita precisavam produzir relatórios para seu próprio funcionamento – e disponibilizavam seu acesso.
Além disso, ele também atribui a maior dificuldade de acesso aos dados a uma crescente resistência ao imposto de renda progressivo (em que as alíquotas sobem conforme a renda aumenta).
Defensor de taxas mais altas sobre os ricos, Piketty tem como grande desafio vencer essa resistência. Apesar do sucesso do seu livro, a etapa mais difícil vem agora: conseguir transformar esse prestígio em capacidade de influenciar governos.
Uma de suas propostas é criar um imposto global sobre a riqueza, o que parece politicamente inviável, segundo seus críticos.
Via G1